No
final da década de setenta sai finalmente do subúrbio limitado para
descobri a tridimensionalidade da capital. Fui estudar em uma escola do
Recife, junto com uma de minhas irmãs. Inicialmente a escola exclusiva
para meninas, passou a aceitar meninos e tornou-se mista. Curioso
relembrar, que mesmo sendo uma escola estadual e logicamente mantida com
nossos impostos, era basicamente uma instituição religiosa. Descobri
que o Estado não era laico, mas isso também só se tornaria
constitucional em 1988. Anexa à igreja da Soledade, a escola seguia os
ditames da fé cristã e os alunos precisavam ser católicos apostólicos
romanos. Certo dia, uma freira entrou na sala e questionou quantos dos
alunos já tinha feito a primeira comunhão. Do total, apenas uns cinco
responderam negativamente, entre os quais, eu e minha irmã. A partir
desse momento fomos inseridos num cursinho de catecismo, que acontecia
depois das aulas, e onde aprendemos os mandamentos da igreja e as várias
histórias fantasiosas da bíblia.
Se
soubesse que mentir não era um pecado tão grande e que não nos levaria
ao inferno, pois que digam os políticos, teria omitido tal fato a
“irmã”, e assim, evitado todo aquele suplicio enfadonho. Tivemos também
que assistir as sucessivas missas para nos preparar para o grande
momento. Tinha uma amiga que, na época, não tinha os dentes da frente. O
que era muito comum, pois que éramos um país dos desdentados. Ela era
“banguela”, e logicamente a apelidei de “vampira”. Digo logicamente
porque é muito comum as pessoas discriminadas também discriminar. A
gente termina replicando as normas e regras estabelecidas, e eu não
seria diferente. Logo, se me sentia fraco e menor, precisa menosprezar
alguém para me sentir superior. Mesmo que fosse um grande amigo. Não é o
mesmo processo que relatei anteriormente? As pessoas me rejeitavam
porque gostariam de saber o que sabia e assim, poderem se sentir iguais a
mim. Não é assim que se dá o processo de inclusão, onde buscamos nada
mais, nada menos, do que a aceitação do outro e do grupo? Mas disso
também me vem à reflexão que na verdade sempre desejamos o que é do
outro. É assim até hoje e acho que sempre será. E olha que segundo a
bíblia isto é um dos sete pecados capitais: cobiçar o que é do outro.
Mas, essa é a mola mestra do mundo capitalista, onde se vale pelo que se
tem. Neste sentido lembro até de um comercial que dizia: Sabonete
“Phebo”, vale quanto pesa. Alguém lembra? Sim, sou da época do sabonete
Phebo (com ph mesmo) e também do “Alma de Flores” e do “Solemar” (um
sabonete a base de limão que deveria ser um terror). Acho que a
filosofia phebo se tornou regra, porém como sempre fui diferente preferi
acreditar desde muito jovem que ao contrário, na vida se vale o quanto
pensa. Sim, porque quem pensa, cria, desenvolve e evolui.
Bom,
mas voltando ao sabonete, e neste momento peço mais uma vez desculpas
pela quantidade de devaneios. Mas justifico que ao relembrar o passado
torna-se difícil, e por não dizer impossível, estabelecer uma relação
cronológica exata dos fatos. Lembro apenas, que em um dos meus
aniversários ganhei de presente um sabonete. E isso, pasmem, era
presente que se dava naquela época. Como lá em casa tudo era para todos,
claro que meu querido sabonete, que tinha um enorme valor sentimental
(acho que devido ao fato de meus outros irmãos não terem um sabonete só
deles), foi parar no banheiro. Vai explicar o sentido de coletivo a uma
criança chata e metida como eu. Percebo agora que desde pequeno já era
meio egoísta. Pensando hoje, acho que essas situações demarcam o inicio
de processo de individualização, quero dizer, não individualismo, mas o
processo pelo qual descobrimos que somos uma pessoa separada das outras.
Se antes pensávamos que éramos todos iguais, naquela linha meio os três
mosqueteiro: um por todos e todos por um, a partir de algum momento
descobrimos que não. Que não somos tão iguais, e assim começamos a
demarcar nossos territórios. Penso também, se não seria a partir desse
momento que começamos a nos sentir sozinhos. Será esse o inicio da
solidão humana? Aquele sentimento que nos invade de vez em quando, e que
temos a sensação de que mesmo rodeados de muita gente, estamos sós?
Mas
voltando a escola, ou melhor, ao grande momento religioso de minha
vida, lembro que durante as missas ficava intrigado com o corpo dos
santos. Sim, porque corpo de sento é feito pé de cobra, quem ver morre.
Já repararam que as imagens sacras estão sempre bem vestidas, arrumadas e
com um ar de perfeição? Bem, como era curioso, queria saber se os
santos eram iguais a mim e a todos os mortais. Queria ver se eles tinham
pernas, barriga, peito, bunda e logicamente, se eles tinham pênis e
vagina. Certo dia, depois que a missa terminou e todos saíram, voltamos a
igreja, eu e minha amiga, e começamos a levantar as roupas dos santos. E
para nossa surpresa e decepção, não havia nada. Ou melhor, não havia
corpo, apenas uns cavaletes de madeira que uniam cabeças e mãos de
gesso. Logicamente fiquei decepcionado. Mas confesso também que minha
descoberta me rendeu certo status de corajoso. Afinal, quem teria
coragem de cometer uma obscenidade daquelas com os santos da grande
igreja?
Durante
as missas ficava extremamente irritado quando tínhamos que ficar de
joelhos para rezar. Aquela posição, além de incômoda, me lembrava dos
castigos que sofríamos nas escolas. Sim, porque sou de um tempo, onde
alunos mal comportados ficavam de castigo. Muitas vezes, passávamos as
aulas inteiras de joelho ou ainda virados para a parede. Realmente penso
que o Brasil evoluiu muito a partir da definição dos conceitos
relativos a direitos e cidadania. Como se poderia imaginar, que a
escola, que seria um local de aprendizagem, inclusive sobre nossos
direitos e deveres, seria também um espaço de tortura e maus tratos?
Acho mesmo, que na época já fazia esses tipos de questionamentos, tanto
que sempre tive certa dificuldade com regras muito rígidas e também com
figuras de autoridade. E isso devia ser um conflito enorme em época de
ditadura militar.
Bom,
mas ainda nas missas, também me irritava não poder receber a hóstia (é
com h?). Ficávamos naquelas filas enormes e quando chegava nossa vez
tínhamos que sair pelos lados com a boca vazia. Tinha vontade de gritar
para o padre que a igualdade é para todos. Mas tinha que concluir todo
aquele ritual para finalmente me tornar cristão, ou pelos menos, passar a
ser reconhecido como tal. Minha primeira hóstia foi na comunhão. Criei
uma expectativa enorme, confesso que fiquei até nervoso. Era a primeira
vez que receberia a graça do Senhor, pelas mãos de seu representante.
Sei que fechei até os olhos, acho que estava esperando ver Jesus,
tolinho que eu era. Quando senti aquele gosto de farinha, que se
dissolvia em minha boca pensei: que coisa ruim. É esse o corpo de
Cristo? Fiquei olhando a cara das pessoas e todas pareciam satisfeitas e
felizes. Estavam saciadas com o Senhor. Porém, não sentia nada. Só uma
coisa grudenta que ficou colada no meu céu da boca e que tive que
decolar com a língua. Finalmente o negócio desceu de goela a baixo e
nunca mais quis saber de hóstia, de missa e de todos aqueles
mandamentos.
Mas
surpreso fiquei ao ver, dias depois, que nada havia mudado em minha
vida. Eu continuava o mesmo e sofria as mesmas perseguições e
brincadeiras que tanto me faziam sofrer. E pior, não acontecia nada. Mas
como? Eu não era agora filho de Deus? E como ele não me ajudava e nem
me amparava? Acho que foi aí que comecei a questionar sua existência e
também se ele era justo. Por outro lado, pensava que talvez meu
sofrimento se desse pelo fato de não ter sido aceito por ele. E aí, me
revoltava, pois se me diziam que o reino de Deus era dos justos, porque
não tinham me aceitado? Teria sido por violar a intimidade dos santos?
Ou seria porque o paraíso nunca existiu, e se existia era tão injusto
quanto o mundo real? Quero salientar, que falando assim, podem até me
taxar de herege ou mesmo um pecador. Mas confesso que não e digo que até
tenho uma relação muito boa com o divino. Apenas descobri o meu próprio
deus, que logicamente não podia ser tão intransigente, bravo e
ameaçador como aquele divulgado pela igreja.
Lembrei
agora, minha indignação com o padre que fumava. Ficava pensando que se
fumar era pecado, como aquele homem que era representante dos céus podia
cometer tal heresia? Comecei até a duvidar que ele realmente
acreditasse em Deus. Coitado do pobre padre. Terminou sendo julgado pelo
simples fato de ser tão viciado quanto sou agora. O que fica da lição é
que não devemos julgar para não sermos julgado. Viram só como eu
aprendi? Só sei que a primeira comunhão só me fez mais confuso. Digo
isso, porque como nunca gostei muito de “histórias da carochinha”, e na
época já questionava alguns dogmas, como por exemplo, a virgindade de
Maria. Achava aquela historinha da serpente tão fantasiosa que não
conseguia entender como Adão e Eva poderiam ser tão tolos. Outra coisa
que me preocupava e despertava a curiosidade era o seguinte raciocínio:
Se Caim e Abel eram filhos do primeiro e único casal criado por Deus, e
se todos nós somos seus descendentes, como se deu o processo de
procriação no mundo? Quantas vezes a Eva teve que engravidar para super
populacionar o planeta? Eles tiveram filhas? E essas, engravidaram de
seus irmãos? E depois, o processo foi se dando primo com primo? Mas
como, se o encesto era um pecado abominável? Acho que a partir deste
momento se tem uma pequena idéia da amplitude e complexidade de
divagações e questionamentos que transbordavam em minha cabeça de
“adolescente diferente” e inquieto.
Como
a velocidade de resposta das escolas era menor que a minha necessidade
de explicações e justificativas para uma quantidade enorme de
divagações, para as quais não conseguia soluções concretas, me enveredei
nos livros. Foi uma das melhores fases de minha vida e reconheço o
valor fundamental para minha formação e por que não dizer, paz de
espírito. Descobri que não estava sozinho e que já não era tão diferente
o quanto imaginava. Outras pessoas também pensavam de forma diferente,
como eu. E também pareciam sofrer ao buscar por respostas, que muitas
vezes contrariavam verdades consolidadas cientificamente ao longo dos
séculos. Imaginava por exemplo o quanto seria tolo da parte de “Deus”
criar um universo tão extenso, com nove planetas flutuantes e soltos no
ar, onde só em um existiria vida. Também não me satisfazia à idéia de
termos vindo do pó. Preferia a descendência dos macacos. E olha que nem
conhecia o Charles Darwin e sua teoria da evolução das espécies. Isso
não se falava nas escolas. Acho que era considerado revolucionário
demais, e revolução era coisa de comunista.
Certo
dia ao contemplar a mansidão do mar e perceber que um navio ia em
direção ao horizonte pensei: por onde ele seguiria? Na minha visão o
mundo acabava ali. Então, descobri nos livros que o mundo era redondo e
que o horizonte representa apenas o limite de nossa capacidade visual a
partir de uma determinada perspectiva. Mas como o navio não afundava?
Depois, como um avião tão pesado se tornava mais leve que o ar e
conseguia alçar vôo e cruzar os ares levando pessoas de um lado para o
outro? Como ligar um equipamento em uma tomada elétrica e visualizar uma
imagem, um fato, que acontecia há milhares de quilômetros? Foram os
livros que me mostraram que para tudo existe uma lógica e uma teoria,
que baseada em cálculos numéricos precisos tornava o homem capaz,
inclusive de chegar à lua 9foi em que ano mesmo?). E eu que pensava que
os bebes eram trazidos por cegonhas bondosas, e que papai Noel cruzava
os ares num carrinho de trenó. Quanta inocência será que cabe na cabeça
de um adolescente?
Acho
que comecei minhas leituras por alguns clássicos da literatura moderna.
Admirável Mundo Novo me deixou perplexo com a teoria dos clones. Para
mim, era um livro revolucionário e a frente de seu tempo. Depois vieram
Eram os Deuses Astronautas, que confirmou minha suposição em relação à
vida em outros planetas; tentei ler O Capital de Max e percebi que não
estava preparado, pois não tinha base suficiente. Voltei às ficções
científicas, entre elas, Cavalo de Tróia, que conta outra história de
Jesus. Segui pelos romances “água com açúcar” e elegi Sidney Sheldon meu
autor favorito (não é o que fazem hoje com o Paulo Coelho?). O Outro
Lado da Meia Noite é inesquecível e confesso que de certa forma me
identifiquei com a Noele Page. Tanto que achava que quando me casasse e
tivesse uma filha, ela teria o mesmo nome. É engraçado como a gente
cresce achando que seguirá os mesmos caminhos dos pais e adultos
próximos. Assim, cresci também achando que um dia me casaria com uma
linda jovem e que com ela teria filhos. Imaginava até que iria trabalhar
para sustentar a família e viveríamos felizes para sempre. Hoje tenho a
certeza de ter entendi o conceito de construção social. Mas, voltando
as minhas “mil e uma viagens submarinas” (é de Júlio Verne, não é?)
depois li Um Estranho no Espelho, Nunca é Para Sempre, O Céu Está
Caindo, A Herdeira, e tantos outros, até perceber a regularidade da
escrita e recorrência do estilo fácil utilizado pelo meu querido autor
(coincidência novamente com Paulo Coelho?). Assim, enveredei pelos
mistérios e crimes de Ágatha Kristie e seu detetive infalível “Poirot”. O
Caso dos Dez Negrinhos, para mim é o melhor, depois O Martelo Amarelo e
mais um bocado que adquiri e formei uma considerável coleção. Dela, fui
para Harold Hobbins e sua 79 Park Avenue. Pense no dramalhão, só não
era mexicano porque se passava nos Estados Unidos. Mas tirando a
velocidade da escrita, em muito se parecia com o Sidney Sheldon (ou com
Paulo Coelho?).
O
interessante da leitura é a possibilidade de conhecer o mundo. E sob
várias óticas, dependendo do autor. Começava a gostar de perceber como
cada pessoa podia ver um mesmo local de forma diferente. Enquanto alguns
salientavam a boemia e a riqueza arquitetônica de uma Roma ou Veneza,
por exemplo, outros por sua vez, às vezes salientavam as sujeiras e a
falta de organização de uma mesma cidade. E assim, percebi que tudo na
vida depende do ponto de vista de quem ver e descreve determinado fato.
Encontrei nos livros as possibilidades que precisava e dispunha para
rodar o mundo e conhecer novos horizontes. E isso é extremamente
fantástico e disponível a todos (será mesmo? Talvez seja melhor
perguntar ao Ministro da Educação ou ao Secretário de seu estado, de sua
cidade...).
Depois
de toda essa canseira, correndo com os personagens por países distantes
e nunca visitados, resolvi voltar e conhecer meu país através da nossa
literatura. E assim me deliciei com a Iracena dos lábios de mel,
Senhora, O Tronco do Ipê e A Alma de Lázaro, do José de Alencar. A Mão e
a Luva, de Machado de Assis, era uma excelente crônica, porém detestei A
Morte de Brás Cubas e sua frase celebre: aos perdedores as batatas.
Menino de Engenho e Fogo Morto, de José Lins do Rego, deve ser lido por
todos. Devorei algumas obras de Jorge Amado, entre as quais Tocaia
Grande, Tereza Batista Cansada de Guerra, Dona Flor e Seus Dois Maridos e
Capitães de Areia. Considero esse, excelente e fundamental para quem é
da área social, e que, aliado as obras do pernambucano Nelson Rodrigues,
entre os quais Bonitinha Mas Ordinária, O Beijo no Asfalto e Perdoa-me
Por te Trair, proporciona uma excelente reflexão sobre a hipocrisia da
sociedade e da família brasileira burguesa.
Também
li O Cortiço, de Aluisio de Azevedo e Maria, Maria, que não relembro o
autor. De Raquel de Queiroz, As Três Marias. E era engraçado ver depois
esses romances em forma de novela. Muitas vezes os personagens que
imaginava em nada se pareciam com os da ficção, e mais uma vez me
confirmava a teoria do ponto de vista individual. Retornei aos autores
estrangeiros com Volte Para Casa Piter e Querida Mamãe, que também não
relembro os autores, mas que eram autobiografias; O Mundo Transparente,
de Irving Wallace; O Maior Vendedor do Mundo, de O.G Mandino; e o
inesquecível Retrato de Dorian Gray, do Oscar Wilde, me foram livros
inesquecíveis. Também conheci alguns que classifiquei como de auto-ajuda
e melodramáticos, tais como Pollyanna e O Menino do Dedo Verde; o livro
das misses, O Pequeno Príncipe, é quase obrigatório porque afinal
“somos responsáveis por aquilo que cativamos”. Fernão Capelo Gaivota,
com seu vôo cada vez mais alto até se espatifar nas pedras, trás uma
bela mensagem de perseverança e desafio aos limites (por favor, não me
levem a sério), e por fim, para fechar a coleção, o Deus Negro, do
Neimar de Barros. Este último de uma estupidez absurda e princípios
morais equivocados. Os livros também têm esse poder de proporcionar
pontos de vista totalmente diferentes dos nossos. Hoje entendo como
positivo, mas confesso que na época suas colocações excludentes me
causaram grande desconforto. Alguém conhece esse livro? De qualquer
forma aconselho a não perderem seu tempo com tal leitura. Garanto que
vocês sobreviverão melhor sem ele, mas lógico, isso é o meu ponto de
vista
Outra
coisa importante que aprendi com os livros foi formar minha própria
opinião sobre determinadas coisas e fatos. Quantos livros li
questionando determinados posicionamentos e colocações dos autores. Em
determinados momentos chegava mesmo a duvidar do relato ou ainda pensar
outras formas de resolver os problemas. Isso nos leva a pensar e pensar é
sempre positivo e enriquecedor (lembrem que a gente vale o quanto
pensa). Sei que também adorava os livros de terror e suspense. O que
mais me marcou foi “Damein, a Profecia”. Eram três livros que contavam a
história do filho do anticristo. Lógico que li os três. Acho que tenho
uma queda pela vilanice. Fiquei tão impressionado, e fascinado ao mesmo
tempo, que procurava ver no espelho se tinha o símbolo 666 no couro
cabeludo. Imaginava que como tinha nascido no dia seis do ano de
sessenta e seis, poderia ter também o número da besta. Legal, não é?
Mas, de modo geral como me achavam metido à besta, terminei por me
satisfazer de certa forma.
Na
verdade acho que todo esse período me foi de extrema riqueza,
contribuindo inclusive, para facilidade que acredito ter na escrita. Ah,
por fim, não poderia esquecer nosso escritor maior, o Paulo Coelho!
Sentiram firmeza na exclamação? Será que alguém poderia me explicar a
febre que se deu depois do Alquimista? Acho que só isso realmente
justifica tanto sucesso. Ou será o nível da educação brasileira? E olha
que eu, como todo bom brasileiro, já li também Verônica Decide Morrer e
Cinco Minutos. Tentei até lê aquele que fala do caminho de Compostela,
mas confesso que no meio da estrada me deu um enjoou que até pensei que
estava grávido. Para evitar maiores celeumas prefiro não tecer maiores
comentário e apenas me limitar a dizer que não gosto do estilo. Talvez
se perdesse menos tempo lendo aquelas coleções tipo Sabrina e tantas
outras que existem ou existiram por aí. Mas tudo bem, o que importa é
que ele é membro da Academia Brasileira de Letras e isso já o torna um
grande escritor, não é mesmo? Mas, por outro lado, se considerarmos que o
José Sarney também é titular de uma daquelas cadeiras... Bom, é só meu
ponto de vista. Melhor parar por aqui, afinal não sou nenhum
especialista em literatura e espero que entendam que falo apenas como
leitor.
Já
nas aulas, detestava matemática, mas me virava como podia. Gostava de
português e ciências. As descobertas me fascinavam. Em determinados
momentos começo a rir ao lembrar que fazíamos provas para passar em
disciplinas como religião, moral e cívica, OSPB. E viva os militares.
Hoje entendo que não podia ser diferente e agradeço aos coronéis e todas
as patentes do poder, por terem, de certa forma, tentado destruir o
trabalho que meus pais e irmãos tiveram em me fazer aprender a pensar
por mim mesmo. A disciplina era ensinada pela força e acredito que nunca
houve realmente interesse do Estado em educar a população. Não estamos
vivendo esse mesmo processo nos dias atuais? Manter o povo não informado
garante a manutenção do poder burguês, não é mesmo? Mas felizmente a
ditadura acabou (Será?). Mas deixemos as conjecturas políticas e sociais
para outro momento. Lembro apenas que éramos um país de futuro. O
Brasil sempre foi “um pais que ia prá frente”, como já dizia a canção,
mesmo sem nunca ter saído do lugar (passamos quanto tempo mesmo sendo
classificados como país em desenvolvimento?).
Não
liguem, acho mesmo que devo ter sido um adolescente muito chato. Talvez
por isso, minha diferença também tenha se destacado na nova escola.
Agora eu era um adolescente fresco demais e que só conversava com as
meninas. Acho que em toda a escola só existiam cinco alunos do sexo
masculino. Dois deles eram maiores que eu, mais fortes que eu, e
logicamente menos inteligentes que eu. Eram os lideres da bagunça e não
tinham vindo em busca de novos conhecimentos, mas sim, transferidos de
outras escolas que os expulsaram. Tinha um garoto mais novo que eu e com
um nível de educação compatível com o que julgava necessário para estar
numa escola como aquela. Não esqueçam que tinha vindo do limitado e
subalterno mundo dos subúrbios. E por mais que não me enquadrasse no
modelo de subjugação, tinha introjetado alguns traços de submissão e
inferioridade em relação à burguesia. E olha que o Brasil é um país para
todos e que todos somos iguais perante a Lei (já leram isso na
Constituição? E acreditaram?). Para mim, aqueles garotos eram burgueses,
logo, de certa forma, se encontravam acima de mim. Eram superiores em
tudo, inclusive na esperteza e malandragem. O quarto garoto era como se
diz no popular, “tapado de pai, mãe e madrasta” e não conseguia me
relacionar com ele. Só me restaram o garoto mais novo e as meninas.
Meu
inferno começou a mudar no final daquele ano. Os dois grandões foram
reprovados e ficariam em outra turma. Segui com meu pequeno companheiro
para a turma mais elevada. Aqueles já não tinham tanta superioridade em
relação a mim. Sabiam menos que eu. Precisava de aliados, por isso
ensinava a meu amigo as matérias e assuntos que não conseguia aprender.
Na verdade não só por isso, mas porque também gostava realmente dele, e
hoje me pergunto qual terá sido seu destino. Engraçado é que o seu nome
era Jerry e eu pensava que era por causa do desenho. Depois concluir que
seus pais deveriam ser fãs do Jerry Adriano, que era cantor. No segundo
ano, novos alunos e novas amizades. Definir as pessoas de quem me
aproximaria. Tinha uma garota carioca. Não sabia como eram os cariocas e
achava que o rio de Janeiro era muito distante e muito desenvolvido e
rico (coisa de nordestino). Como ela era diferente, parecia confirmar
minha hipótese. Era moderna e comunicativa, criou um grupo de teatro e
começou a ensaiar Os Saltimbancos, obra de Chico Buarque. Ia aos
ensaios, muito mais interessado na carioca do que no teatro. Era a
primeira vez que me apaixonava. Era o tão falado amor platônico dos
tantos livros que li. Queria estar perto dela e logicamente fazer parte
daquele grupo.
Aos
poucos fui estabelecendo contatos e quando precisaram de uma
substituição, entrei no elenco. O espetáculo foi sucesso na escola.
Descobrir o valor dos aplausos e definir que queria aquilo para mim. Mas
a carioca era centralizadora e liderava o grupo, sem grandes
possibilidades de troca ou negociações. Não haveria grandes espaços para
mim e logicamente não queria ser apenas um integrante de elenco. Outra
integrante tinha escrito um texto. Não lembro bem o enredo, mas acho que
era sobre uma tribo indígena. O grupo forçou uma votação e mesmo
sabendo que não me restaria personagem, pois que todos eram femininos,
votei contra a carioca. Queria desafiá-la e consequentemente destituí-la
de um lugar que desejava. O novo texto foi aprovado e ela reduzida a um
papel secundário. A autora tornou-se a diretora do espetáculo e
tornei-me seu melhor amigo. A essa altura já achava a pequena carioca
insuportável e pedante.
Em
seguida sugeri a montagem de Monica e Cebolinha no mundo de Romeu e
Julieta, texto de Ziraldo. Interpretei meu primeiro grande personagem
principal, o Cebolinha Romeu. Fazia agora, parte do primeiro elenco.
Destacava-me na escola e despertava a admiração de algumas professoras e
também de alguns alunos. Eu era conhecido e reconhecido. Mas não só por
causa do teatro, é que também diziam que eu desenhava bem. Cresci de
certa forma ouvindo isso. Lembro que até pintei um painel enorme, com
uma imagem sertaneja, com a oração de São Francisco por cima. Isso a
pedido da temida vice-diretora de olhos violetas. Depois montamos O
Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado, e dividi a cena com a carioca.
Estávamos no mesmo patamar. Éramos os personagens principais, sendo que
agora era também co-diretor. Foi o auge. Descobria que conseguia chegar
onde queria. Fazia-se necessário apenas ser paciente e estratégico. E
isso eu estava aprendendo aos poucos.
Acho
que deixei tomar pela vaidade e no ano seguinte fui reprovado. Tive que
refazer meus planos e precisava recuperar meu status de inteligente,
que por hora estava ameaçado. Montei um segundo grupo de teatro, e agora
tínhamos uma competição. O primeiro grupo porém, foi desfeito e alguns
integrantes se incorporaram ao meu, menos a carioca, claro. Seria demais
para ela. A partir daí me tornei não apenas o diretor do grupo, mas o
próprio dono. Escrevia os textos, dirigia e logicamente protagonizava os
espetáculos. Fiz do teatro escolar meio reino. Ninguém mais me
incomodava, afinal, eu me tornara referencia e ganho o jogo. Agora dava
as cartas e mantinha sobre controle os inexperientes e jovens atores.
Penso que na verdade teria sido um excelente aprendiz de ditador.
Aquela
escola foi especial para mim. Foram quatro anos de coisas boas e de
muita aprendizagem. Foi onde me apaixonei sucessivamente pela garotas
mais fortes de minhas turmas e onde também dei meu primeiro beijo de
boca. Sempre tive atração pela força (será que isso é simbólico?).
Descobertas a parte, nunca poderia pensar que minha vida seria tão
diferente daquela imaginada naqueles anos. Tantos planos, tantos sonhos
vividos juntos, com tantos amigos. Promessas de amizades eternas. Nunca
mais reencontrei nenhum deles, e acho mesmo que hoje não os conseguiria
reconhecer. São os rios das vidas de cada um que correm em destinos
opostos. Uns em maiores velocidades, outros em águas mansas. Acho que
naquele final de ano, meu rio correu novamente em alta velocidade e me
levou mais uma vez pra longe. Fui aprovado na Escola Técnica e fechei um
ciclo coroando uma história de sucesso. História que aprendi a escrever
com minhas próprias mãos, e que como eu, se fazia mais uma vez
diferente da história de tantos outros.
A
escola técnica federal representava outro mundo, outra história. As
aulas eram mais elaboradas em conteúdo, os professores mais bem
preparados. Era educação de qualidade, salvo as exceções de alguns
profissionais, que sem querer ofender, correspondia perfeitamente às
representações sociais que se tem do funcionário público. Tinha-se certa
liberdade para decidir sobre quais disciplinas pagar em cada período. O
ensino era moderno, as salas amplas e se podia sair da aula sem
precisar pedir permissão. Fui bolsista e de certa forma ingressei no
mundo profissional. A partir daquele momento comecei a desejar a
independência. Estava pronto para ser dono do meu nariz e tinha
ansiedade em me “profissionalizar”, sonho de todos daquela época.
A
curiosidade agora não era só cientifica, mais também sexual. Como dizem
os grandes estudiosos, que para tudo encontram justificativas
biológicas, os hormônios gritavam e a sexualidade era um terreno
desconhecido a ser explorado. Antes dos quinze anos fui violentado.
Descobrir as dores que acompanham as descobertas práticas. As teorias
são sempre mais fáceis, porém menos didáticas, pelo menos era no que
acreditava. Confesso que hoje tenho outra percepção e compreensão a
respeito dos abusos sexuais. Na época não existia estatuto da criança e
do adolescente, e não se tinha como fazer denuncias. Também, como
denunciar? Para quem contar? Não se falava de sexo, e a noção de pecado
se referia diretamente as práticas desviantes. Mas o que eram mesmo
práticas desviantes? Independente disso, o que fica realmente da
experiência é o peso que a vitima é obrigado a carregar e a suportar. A
dor física e momentânea parece dilacerar não só o corpo, mas
principalmente a alma. O sentimento de culpa por ter procurado por algo
“errado”, para o qual, com certeza não se estava preparado; o medo de
ter cometido um pecado e por isso ser condenado a queimar nas chamas do
inferno; a dor abafada e sufocada pela vergonha; o sentido de desonra; e
acima de tudo, a revolta por ter sido violado, subjugado e reduzido ao
nada, já seriam bastante para acabar ou desmoronar uma pessoa madura.
Mas
o que pensar de um adolescente despreparado e imaturo? Sei que a dor
física é passageira, pois que o corpo encontra formas para a cura. Mas
quando falo de dor, me refiro a uma sensação que se traduz num misto de
ansiedade, angústia, medo, tristeza, impotência e solidão que se
transforma em sofrimento profundo. Uma dor que não cessa. Uma dor que
ressurge a cada nova lembrança. Dor que se intensifica toda fez que
pensamos ou desejamos novas experiência sexuais ou afetivas. Uma dor que
não passa com remédios e não se cura em curto prazo. Só a maturidade te
leva ao perdão, primeiro de você próprio e por último do agressor. E
confesso que só esse perdão foi capaz de diluir a mágoa que me
acompanhou por anos a fio. Neste sentido, acho que mágoa é um sentimento
extremamente nocivo. É muito mais forte que o ódio, que ao menos te
motiva a vingança. A mágoa ao contrário parece te afundar num poço de
impossibilidades e incompetências.
Descobri
de uma forma cruel que nem todas as pessoas eram boas em essência e que
no mundo do sexo, o jogo de poder muitas vezes gera muito mais prazer
do que o próprio ato em si. Foi assim que descobrir as emoções e aprendi
a controlá-las. Acho que isso me levou a racionalidade e hoje consigo
perceber que de certa forma tal experiência se tornou fundamental para o
meu crescimento pessoal. Não que a considerasse positiva, mas porque
era uma parte da minha história que não poderia ser apagada. Não teria
como negar para mim mesmo, então passei a vê-la e tratá-la como simples
tragédias da vida, das quais não estamos livres. Assim, encontrei formas
de sobreviver, de me manter integro e inteiro, e dessa forma, me
preservar. Sabia que o rio estava prestes a mudar novamente o rumo de
minha vida. Tinha um futuro de felicidades e descobertas, menos ou
talvez igualmente dolorosas pela frente. Então descobri que podia
inventar minha própria correnteza. Iniciei o curso técnico e dois anos
depois me apaixonei verdadeiramente por alguém com quem convivi por
vinte e um anos de minha vida. Uma das pessoas mais belas e importantes
em toda a minha vida. Foram anos maravilhosos e de grande aprendizado.
Acredito que também pude ensinar muito, afinal, qualquer relação se
estabelece na troca.
Tornei-me
adulto antes do tempo. Claro que fiz grandes amizades, chorei as
despedidas dos que ficaram atrasados, e refiz promessas de novas
amizades eternas. Sempre fazemos isso e depois de um tempo esquecemo-nos
de cumprir. Lá não fiz teatro, mas pratiquei esportes. Participei de
jogos escolares e cheguei mesmo a ganhar medalha de prata nos
quatrocentos metros rasos. Incrível imaginar que de vez em quando
reencontramos grandes ex-amigos e percebemos não ter mais algo tão
incomum, e que cada um seguiu seu rio. Ao terminar o curso técnico
comecei a trabalhar e passei a ser definitivamente responsável por mim
mesmo. Era a tão sonhada autonomia. Era adulto e agora acessaria outros
mundos. Faria novas descobertas e viveria novas experiências. Conheceria
milhares de pessoas com quem trocar conhecimentos.
Em
poucos meses me tornei chefe pela primeira vez. Não tinha ainda
completado dezenove anos e assumir talvez um dos maiores desafios de
minha vida. Comandei um grupo com mais de vinte homens adultos, casados e
moldados numa cultura machista. Não admitiam o fato de ter que
responder a um garoto. Mas eu já era adulto, só eles que não percebiam.
Eu tinha certeza disso. E precisava ter. Eu era diferente, lembram? Era
preciso crescer rápido e me tornar cada vez mais forte para enfrentar os
desafios da vida. E assim, se foram os três primeiros anos de minha
vida profissional.
Apresentei
meu primeiro trabalho científico num seminário internacional, relatando
a experiência institucional da campanha de prevenção a AIDS. Estávamos
no inicio dos anos oitenta e a “peste gay”, como proclamavam os
católicos fervorosos e evangélicos desinformados, se tornava epidemia.
Fui convidado por uma empresa concorrente, e lá assumi novo cargo de
chefia. Não havia coordenadores de áreas, era-se reconhecido como chefe.
Isso gerava status. E por isso, as pessoas matavam e morriam,
trapaceavam e investiam todos os seus esforços. Era época de altas
inflações, economia desequilibrada e inicio da era da informatização dos
processos. Com a década de oitenta o pais passou, talvez, pelo maior
processo de transformação que já si viu. Abertura política, queda da
ditadura, eleições diretas, movimentos sociais e estudantis, greves
sucessivas, mudanças de moedas e a chegada da qualidade total, que
trouxe a reengenharia e tantos outros modelos e programas de eficiência
que precisavam ser absorvido com um atraso de pelo menos dez anos.
Findava
também a minha juventude, pois que chegaria aos anos noventa com vinte e
quatro anos. Começaria “os melhores anos do resto de minha vida”.
Assistiram a esse filme? Talvez então entendam o que quero dizer. E
naquele momento, acho que pela primeira vez me questionei se realmente
queria, ou ainda, gostaria de me tornar um adulto. Acho que também pela
primeira vez me pesou a falta da juventude real. Diziam que todo mundo
passava pela crise dos trinta. Talvez a minha tenha chegado antes. Não
sabia quem eu realmente era e o que realmente queria. Faria vinte e
quatro anos e já estava casado a sete. Fazia faculdade, e em menos de
cinco anos de vida profissional tinha chegado ao cargo de Gerente. Penso
hoje, que talvez tenha corrido demais, corrido na velocidade de um rio
descontrolado e desgovernado, que avança exigindo mais espaço e abrindo
fronteiras. Acho que minha vida sempre foi acelerada. E talvez por isso
tivesse a sensação de que tudo tinha sido tão fácil, e que talvez por
isso não tivesse sido tão prazeroso. Não sei. Talvez, achasse naquele
momento, que simplesmente tinha cansado decorrer tanto, sem nem mesmo
saber o real motivo para tanta pressa.